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EDITORIAL: Abrindo a caixa de Pandora

A história conta que Zeus, ansioso para se vingar de Prometeu por roubar o fogo do Olimpo e entregá-lo aos humanos, apresentou ao seu irmão uma bela mulher chamada Pandora, com quem se casou. Como presente de casamento, Pandora recebeu um pithos misterioso – um frasco oval, embora atualmente citado como uma caixa – com instruções para não abri-lo em nenhuma circunstância. Dotada pelos deuses de uma grande curiosidade, Pandora decidiu um dia abrir o frasco para ver o que havia dentro.

Atualmente, “abrir uma caixa de Pandora” significa uma ação que parece pequena ou inofensiva, mas pode ter consequências catastróficas.

Está claro que em Portugal, não houve nada de inofensivo na ação de pagar um tratamento com o medicamento mais caro do mundo a uma bébé que graças às redes sociais se transformou no caso mais mediático, mobilizando o sentimentos dos portugueses e brasileiros que acompanharam este caso através dos media e redes sociais e realizando as doações necessárias para pagar o tratamento.

Tal como acontece no futebol, todos têm uma opinião sobre este caso da bébé Matilde e foi o que consegui apurar neste verão, naqueles momentos em que este assunto aflorava, observei como ninguém ficou indiferente. Este caso mexeu no mais profundo dos sentimentos das pessoas e a protecção da vida de uma criança é, afinal, tudo aquilo para que fomos concebidos. Se falharmos aqui não sobrevivemos como povo, não sobreviveremos como espécie.

Uma vez mais, o Primeiro Ministro português esteve bem ao proceder, como o fez, fazendo um apelo ao seu Ministro das Finanças para pagar a conta que, encantada, a Ministra da Saúde pôde depois anunciar. Nem poderia ser de outra forma, por uma razão. A mesma razão que levou à demissão da Ministra Constança Urbano de Sousa, que António Costa disse “seria um bocado infantil” e depois voltou atrás quando o Presidente da República, através das suas magistrais intervenções, nos fez ver que o sentimento dos portugueses é uma prioridade nacional.

A lição foi bem aprendida.

Mas foi aberta uma caixa de Pandora. No Expresso, deste fim de semana, emergem agora as vozes daqueles que reclamam a autorização para gastar em medicamentos caros para tratar doentes com cancro.

Mas que espécie de lições podemos tirar daqui com implicação para a saúde dos portugueses?

As conversas em família

No meu editorial do mês passado, em que escrevi aqui sobre o paradoxo da gestão em saúde e a tentação de ser o ‘bom pastor’ faltou-me acrescentar que por vezes é necessário que haja um ‘bom pastor’ em Saúde.

Alguns dos meus leitores portugueses poderão recordar as famosas conversas em família. Tratava-se de um programa de televisão em que o chefe de governo, explicava ao povo português as decisões do seu governo para desmistificar rumores e tentar chegar ao sentimento dos portugueses, já muito descrentes daquele regime.

Este exemplo vale pelo seu intento.

No Estado moderno que é hoje a República Portuguesa, o saber comunicar com os portugueses tem sido um grande activo do seu Presidente. Marcelo Rebelo de Sousa, não se limita a discursos pontuais ou reactivos às circunstâncias, mas sim em manter uma narrativa permanente sobre as prioridades nacionais, os objetivos de país que extravasam quaisquer âmbito partidário e são, por isso, tão poderosos.

Vejam, como exemplo, este breve vídeo onde faz o balanço após um ano da tragédia de Pedrógão, no qual situa a esperança do renascer das cinzas como a prioridade a seguir na criação de um Portugal mais coeso e solidário.

Conversas com o médico de família

No caso da bébé Matilde que abriu a caixa de Pandora para mais pedidos de outros medicamentos caros, a lição a tirar é a necessidade de colmatar o déficit de comunicação em Saúde com toda a população e explicar bem as razões porque se fazem certas coisas e outras não (ver este artigo no Expresso com as explicações do INFARMED, a autoridade do medicamento em Portugal).

Mas para que tenham eficácia, estas ‘conversas com o médico de família’ não podem ter qualquer cariz partidário ou até governamental. Um governo eleito deve ser isento, já se sabe, mas a verdade é que este não responde perante o povo, mas sim perante os seus representantes eleitos no Parlamento e deverá ser aí que os Ministros da Saúde intervenham e defendam as suas políticas e decisões.

Para falar com o Povo português sobre as questões médicas em Saúde, a República Portuguesa deverá pedir ao Governo para nomear aquilo que na maioria dos países se designa como Chief Medical Officer, função que atualmente é desempenhada em Portugal pela Directora-Geral de Saúde e que poderá ser vista como um ‘médico de família de todos os portugues’.

De forma isenta e imparcial, poderá explicar porque certos medicamentos ainda não podem ser usados, quais os riscos associados a estas terapias inovadoras e, desde logo, esse grande risco de dar esperança e logo não produzir qualquer resultado. Será que a RTP ou alguma estação de televisão privada agarra esta ideia das conversas em família com a máxima autoridade médica em Portugal? Seria não apenas a melhor forma de acabar com a desinformação mas também contribuir para uma maior literacia em Saúde por parte da população, um objetivo do plano nacional de saúde de Portugal.

Termino com inicei, quando Pandora abriu a caixa, todos os males do mundo escaparam de dentro, apenas ficando dentro o espírito da esperança. A partir dessa história, surgiu a expressão “A esperança é a última a perder”.

Crédito da imagem:  Lawrence Alma-Tadema's water-colour of an ambivalent Pandora, 1881 
By | 2019-09-13T11:12:36+01:00 Setembro 12th, 2019|Categories: EDITORIAL|Comentários fechados em EDITORIAL: Abrindo a caixa de Pandora

About the Author:

Licenciado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISPA, detém um mestrado em Gestão de Informação pela Universidade de Sheffield e um doutoramento em Ciências da Gestão pela Universidade de Lancaster. A partir de 1996, desempenhou a função de professor no Instituto Superior de Psicologia Aplicada e na ISEG (Escola de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa). Como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, concluiu o doutoramento na Management School da Universidade de Lancaster em Novembro de 2000. Acumulou vasta experiência como consultor, colaborando com o Governo Regional da Madeira (Direção Regional de Saúde) e participando em diversos projetos de consultoria e investigação em parceria com instituições como o ISEG, INETI, Câmara Municipal de Évora, várias empresas do grupo EDP, Ministério da Saúde de Portugal, Eureko BV, Observatório Europeu da Droga e PWC em Espanha. Certificado como facilitador profissional e membro da IAF (International Association of Facilitators), teve um papel crucial na conceção das Cimeiras Ibéricas de Líderes de Saúde na Espanha, além de ter sido co-fundador do Fórum do Hospital do Futuro em Portugal. Especializado em GDSS (sistemas de apoio à decisão em grupo), projetou intervenções para otimizar processos de mudança e inovação nos setores de saúde e educação. Desde 2020, é cofundador da Digital Collaboration Academy, uma empresa sediada em Londres dedicada a facilitar a adoção de ferramentas para a colaboração digital. Autor e editor da série de livros "Arquitetar a Colaboração", aborda princípios, métodos e técnicas de facilitação de grupos. Sua trajetória, combinada à experiência como residente em vários países e presentemente em Portugal, moldou sua abordagem voltada para as estratégias de colaboração e desenvolvimento económico.