Devo confessar que me faltam os dados sobre o impacto financeiro da COVID19 no SNS, sabemos que ao nível operacional foi desastroso pois gerou enormes déficits de produção, mas ainda não temos a análise dos saldos financeiros dos anos da pandemia.
Em contrapartida, temos sim um excelente relatório sobre a evolução orçamental do SNS entre 2013-2019 feita pelo Conselho das Finanças Públicas, um órgão independente com a missão de proceder a uma avaliação isenta sobre a consistência, cumprimento e sustentabilidade da política orçamental, de modo a contribuir para a qualidade da democracia e das decisões de política económica e para o reforço da credibilidade financeira do Estado.
Este relatório vem dar algo mais de contexto à recente aprovação de um OE para saúde em 2022, cheio de coragem e valentia.
Um orçamento para a saúde que aumenta 6,7% acima do aumento previsto do PIB e que é a continuação do esforço que se iniciou há uns anos, nas palavras da própria Ministra da Saúde portuguesa.
Mas olhando para trás não poderia ser outra coisa. Após aquela histórica mensagem de Natal do primeiro-ministro português – António Costa – em 2019, ficou muito clara a aposta no reequilíbrio das contas do SNS, condição imprescindível para o seu fortalecimento e sustentabilidade.
Vejamos aqui como evoluíram as contas do SNS nesse período.
O derrapar das contas em 2018 não deve ser alheio a um esforço de investimento e contratação de pessoal que depois foi mantido em 2019, mas já com um aumento substancial na receita atribuída pelo OE de 2019 (mais 1.100 M EUR).
Com nota positiva pela coragem demonstrada, a eliminação das taxas moderadoras é uma medida plenamente justificada para melhorar a acessibilidade das famílias mais carenciadas, pois o seu contributo nas contas do SNS era escasso e, no limite, se considerarmos os custos administrativos de processamento das mesmas, essa contribuição era ainda mais residual.
Mas será um perigo instrumentalizar este OE corajoso para gerar expectativas sobre a melhoria imediata do desempenho do SNS.
A execução das boas medidas que foram propostas este ano, serão apenas pequenos “parches” que irão continuar a ter um impacto marginal na melhoria dos resultados globais de um SNS refém de uma dívida incomportável e asfixiante.
As conclusões deste relatório são lapidares.
“O efeito financeiro imediato dos défices do SNS, os quais representam um desequilíbrioeconómico persistente, é o aumento da dívida a fornecedores externos. Esta dívida no finalde 2019 ascendia a 1.589 M€ e 39 entidades (mais de 2/3 do total) apresentam um prazomédio de pagamentos superior a 60 dias, contrariando as disposições legais neste âmbitosobre os atrasos no pagamento por parte de entidades públicas prestadoras de cuidados desaúde.”
E observa que: “a dívida a fornecedores em 2019 (1.589 M€) era superior à observadaem 2014 (1.574 M€), o que sinaliza a existência de dívida estrutural, resultante dos défices significativos que são observados anualmente.”
Olhando para a bola de cristal
Chegados aqui podemos fazer como os comentadores futebolísticos: prognósticos? Só mesmo no final da partida.
Num contexto político de uma AR com uma maioria absoluta de um único partido é natural que todos tenhamos as maiores expectativas no poder reformador desta legislatura.
Conhecedor da forma de governar de António Costa, sempre pragmático e consensual, eu acredito que esteja a aguardar pela clarificação da liderança no maior partido da oposição para poder avançar com propostas reformadoras no domínio fiscal e naquela que será a mãe de todas as reformas. Já o defendi antes, é urgente modernizar a função pública, com carreiras e salários atrativos e a plena adoção da transformação digital. (1)
Se não me equivocar muito, é esperado que estas e outras reformas aconteçam já nestes dois próximos anos para que os portugueses possam sentir melhorias efetivas no final desta legislatura.
Desde logo, salvar o SNS da sua atual agonia financeira em apenas 4 anos será uma tarefa hercúlea, tendo presente o quadro financeiro até 2019 e que, suspeito, a pandemia tenha agravado. Só em 2021, as despesas conjunturais com o combate à pandemia foram de 1,3 mil milhões de euros.
Um fator muito positivo a ter em conta neste mandato 2022-2026 é a manutenção da tutela da saúde em dois governantes com uma comprovada experiência política na luta contra a COVID19, uma aprendizagem que lhes será valiosa para as reformas que terão de ser feitas doravante.
Evitar os perigos da gestão por decreto
O primeiro aviso que faço é o de evitar a tentação da ‘gestão por decreto’.
O primeiro-ministro e o seu governo deverão tirar conclusões do caso do SEF e evitar mais medidas por decreto que acabam por ter consequências imprevisíveis e contrárias às boas intenções que possam estar na sua origem.
Por exemplo, anunciar por decreto a criação do “Instituto SNS – Entidade Gestora do Serviço Nacional de Saúde”, tal como já foi proposto pelo Health Cluster Portugal, como forma de resolver muitos dos problemas do SNS mas sem que exista um alargado debate com os profissionais e os utentes para criar um plano consensual e faseado de implementação do mesmo, poderá comportar elevados riscos de novos conflitos e problemas potenciais.
No meu último editorial e num artigo publicado no LinkedIn defendi aqui uma proposta de um plano para a integração do conjunto do SNS numa única estrutura com plena autonomia financeira, mas avançando a partir de uma progressiva autonomização das atuais regiões de saúde. Proponho a criação de uma legislação específica para o Algarve, por exemplo, que converta a atual ARS e Centro Hospitalar Universitário numa grande Unidade Local de Saúde e ganhando assim experiência para avaliar as melhorias de execução antes de alargar esse conceito a outras regiões e, finalmente, a todo o continente no seu conjunto.
Como conter o aumento da despesa
Em anteriores editoriais já defendi aqui o princípio da subsidiariedade, tão caro a toda a União Europeia, e que tem sido aplicado com reconhecido sucesso nas regiões autónomas portuguesas. Tanto os Açores como a Madeira dispõem hoje de serviços de saúde mais criativos e que dão melhores respostas às populações. Todos sabemos que os Açores já dispõem de nutricionistas nos seus cuidados primários e na Madeira as consultas de psicologia são universias e gratuitas.
Trata-se de outorgar ao SNS, no continente, esses mesmos princípios de subsidiariedade e delegar às suas administrações regionais a possibilidade de adaptar as suas prestações assistenciais para poder dar respostas localmente mais eficazes, ao mesmo tempo que se podem maximizar economias escala de aquisições de bens e serviços a nível nacional e até mesmo ibérico, em cooperação com as diferentes autonomias espanholas ou com outros estados membros da UE, tal como se preconiza no grupo La Valleta.
Ou seja, a combinação de uma melhor organização local através da autonomia de gestão para um pleno aproveitamento de recursos de pessoal, tanto nos cuidados primários como nos cuidados secundários e continuados, e um melhor aproveitamento de compras ainda mais centralizadas na UE poderá gerar economias de escala importantes.
No OE 2022 reforçar a autonomia na gestão hospitalar é uma boa medida mas que poderá ser potenciada se a contratação pelos hospitais se realizar de forma agregada nas suas respetivas regiões de saúde. Por exemplo, a criação a nível regional de equipas únicas de médicos anestesistas para fazerem escalas de serviço em todos os hospitais de Lisboa e Vale do Tejo, tal como em Coimbra e Centro ou no Porto e Norte de Portugal. O mesmo se poderia realizar com outras funções transversais a todos os hospitais de uma mesma região de saúde (imagiologia, anatomia patológica, etc.).
Finalmente, através de um diálogo com as empresas fornecedoras de bens e serviços poderemos chegar a contratos de compras mais racionais do ponto de vista do custo vs. benefício e não apenas com base exclusivamente em preço que é um critério potencialmente enganador.
Ao ter em conta cuidados de saúde baseados em valor, adotam-se critérios-chave como a redução de reincidência ou o número de dias de internamento, que geram menos despesa indireta pelo aumento da eficácia dos cuidados prestados.
Conclusão
Ao intervir na Assembleia da República, na audição no âmbito da apreciação na especialidade da proposta de Orçamento do Estado para 2022, a Ministra da Saúde portuguesa apontou os desafios certos que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem pela frente.
Se é verdade que o problema do financiamento do deficit estrutural e a melhoria das condições de trabalho dos profissionais de saúde são problemas complexas e que requerem abordagens de governo mais sistémicas e multiministeriais, é bem verdade que existem outros problemas cuja resposta está ao alcance de uma boa re-organização do SNS, como é o caso da melhoria do acesso aos cuidados saúde e o objetivo de dotar todos os utentes de uma equipa de saúde familiar.
Para isso deveremos usar o que foi aprendido durante a COVID19, criar um grande “pacto nacional para a saúde e resiliência” que seja gerador de um clima de confiança entre todos os intervenientes no sistema de saúde (e não apenas do SNS) e que os faça participar na busca das soluções mais criativas para a resolução de um problema que é de todos e que nos afeta a todos.
Isso significa o abandono do papel de líder providencial do quero, posso e mando, e a adoção de um novo estilo de liderança mais conversacional e participativo, por parte dos decisores políticos. Pelo que pude observar é este último que tem vindo a ser ensaiado nesta nova legislatura. Espero apenas que não entremos em regressão. Persistir no diálogo e numa gestão colaborativa será essencial para vencer este monstruoso deficit e recuperar a solvência de um SNS de nova geração.
Referências e notas
Aceder ao relatório em formato PowerBI
Notas:
(1) Um recente despacho n.º 6417/2022 do Ministério da Saúde define os eixos estratégicos da política de recursos humanos do Serviço Nacional de Saúde e cria os respetivos mecanismos de operacionalização, uma promissora iniciativa que esperamos possa ter implicações em melhorias salariais para os profissionais de saúde empregues pelo Estado português.